APRENDIZ DE LEITOR

Uma página de alguém que, por influência e necessidade, decidiu dedicar mais tempo a leitura e ao devaneio. Consciente de que a produção textual é um desafio que se faz necessário a cada dia.

sexta-feira, 26 de março de 2010

ALGARISMOS

Não procuravam um ao outro. Como que por ironia ou vontade do destino, se é que isso realmente existe, se acharam. Juntos. Naquela noite, passeando por lugares, até então, pouco explorados. Lá estavam. Cada um vivendo em seu mundo e nem imaginando o mundo do outro. Quando subitamente surge o convite para a conversa. Com receio, mas pouco medo do ser desconhecido, o convidado aceitou, e, partiram para um lugar bem mais reservado que aquele onde estavam pela primeira vez.

A princípio era algo tão comum. Até mesmo porque já havia acontecido outras vezes. E no pensamento vinha sempre a frase de que aquela conversa seria apenas mais uma e de que nada passaria daquilo. Outra simples ilusão e possível sofrimento estavam nascendo.

Pela madrugada iam e os olhos já lacrimejavam refletindo o cansaço dos corpos que haviam se ocupado de atividades desgastantes durante o dia. As conversas eram das mais diversas, falaram sobre tudo, história, geografia, matemática, língua portuguesa e até ensino de idiomas, mas em nenhum momento falaram sobre coisas da vida pessoal. Mantiveram em sigilo essa parte. Ainda era muito cedo para confiar em alguém desconhecido. Duas pessoas que se entendiam nas conversas intelectuais, uma conhecedora a fundo das exatas, a outras, das humanas. Eram seres totalmente opostos.

Hora de se despedir e combinar o próximo encontro, mas não deu tempo porque uma queda de energia fez com que não dissessem nem mesmo um simples adeus. E de repente não mais se encontravam frente a frente. Tentaram se achar logo em seguida, mas a escuridão e o silêncio daquela madrugada não permitiram. Quem sabe no outro dia pudesse voltar aquele lugar e se encontrar de novo. Mas sabiam apenas um nome, e, para piorar, não era confiável. Podia ter qualquer outro. E se fosse um nickname. Não. Já estava viajando para o mundo da informática. Não seria nickname e sim codinome.

Combinaram um código que facilitasse o reencontro. Um deles acatou com entusiasmo. Agora o sinal que uma criou havia se tornado como parte da outra. Que ideia geniosa, pensaram. Porém, a tal inspiração falhou e o código se perdeu entre tantos outros que se podia ter acesso.

Saiu à procura na noite seguinte. Passava por vários lugares onde possivelmente poderia estar àquela criatura por quem tanto havia se encantado. Incansavelmente gastava seu tempo com olhares atentos a cada movimento. Ia e vinha. Não importava a hora, o que queria era rever quem tanto lhe trouxera graça na noite anterior. Como um inseto que cava e nada vê, assim era sua persistência, mas infelizmente, voltou triste para casa como quem perde o bonde da esperança.

Não podia deixar que acabasse algo que nem havia começado. Decidida saiu outra vez à procura da jóia preciosa. Dessa vez com maior disposição e decidiu até mesmo se arriscar em um diálogo com uma pessoa estranha que achava ser aquela com a qual se encontrara antes. Só que no decorrer dos fatos, percebeu que não era ela. Totalmente decepcionada, outra vez, retorna sem notícias. Mas era apenas o começo daquela caçada. Não desistiria fácil.

A busca foi incessante por semanas. Todos os dias, mesmo com dores pelo corpo se arrumava e saia invocando ajuda dos deuses para que a encontrasse ao menos mais uma vez. Não havia explicação para que estivesse se sentindo tanta falta de alguém que mal conhecera. Isso se tornava cada vez mais surreal.

Caminhava outra vez pelas ruas desertas e ao mesmo tempo tão movimentadas. O perigo estava ali. Logo à sua frente, mas aparentemente nada amedrontava sua busca incansante. Olhava cada passo dado para ter a certeza de que não havia deixado para traz quem tanto queria encontrar logo à frente. Outra vez, olhando o vento tocar as folhas secas que estavam caídas no chão daquela avenida deserta, volta para casa cabisbaixa. A tristeza agora já não mais batia a porta, mas invadia sem piedade aquele coração amolecido por uma pessoa desconhecida.

E mais uma vez saiu. Colocou uma blusa aconchegante para que o frio não lhe perturbasse a busca. Aquela blusa, amarela, com capuz e bolsos para esquentar as mãos. Preferia tê-las frias para assim se sentir mais eufórica. Depois de muito caminhar sente que já não agüenta mais aquela brisa gelada tocando-lhe a ponta dos dedos. Coloca-os nos bolsos e sente, do lado direito, um pedacinho de papel mal dobrado, na verdade quase amassado. Certamente, mas um lixinho que guardava para não sujar as vias públicas daquela cidadela. Ignorou e prosseguiu. Não o cansaço pela busca inútil, mas o frio insuportável da madrugada fez com que voltasse ao lar sem nenhum sinal.

Já em seu quarto, aparentemente aconchegante, começa a se desfazer de todas aquelas roupas que usava. Começando pela blusa que já a fazia suar por tanto ter caminhado. Não poderia ter jogado aquele papel na rua. Aquele arquétipo de uma bola que alunos jogam uns nos outros, mas agora era hora de jogar no cesto de lixo que se encontrava na varanda da casa. Prefere jogá-lo ali mesmo no canto do quarto que tinha cada coisa em seu lugar. Olhava para os livros que estavam sobre o criado mudo. Havia várias leituras por acabar, só que se achava sem ânimo para adiantar qualquer uma delas. Era sempre melhor deixar para o outro dia porque leria com mais tranqüilidade as incríveis obras de Machado de Assis e Álvares de Azevedo, e agora ainda mais um começado, Contos Russos. Observava atentamente as cores daquelas paredes. Escolheu as cores que mais amava, verde e azul, com exceção da branca que lhe agredia os olhos tão sensíveis e coloridos artificialmente. Tudo aquilo parecia simbólico demais, mas não tinha razão de ser.

Do fim do corredor um silêncio invadia seu espaço. Não causa-lhe medo, mas trazia pensamentos sombrios da infância conturbada que vivera. Mantinha sempre a porta fechada para que o corredor não a fizesse se lembrar de tantas coisas ruins. Pegou um dos livros, mas preferiu ouvir músicas. Agora já não mais ouvia as de costume. As que lhe disseram que deveria ouvir. Desde o dia que encontrara com tal criatura muita coisa fora mudada em seu interior. A música, nem sempre suave, tocava seus tímpanos e acabava lhe perturbando o sono porque ainda não tinha costume. Mas estava disposta a aprender. Afinal aquilo era mais que natural para todos de sua família ausente. Ao som, adormeceu com esperanças de uma nova procura e que fosse satisfatória no próximo dia. Já estava se cansando de tudo aquilo e percebendo que não mais adiantaria perder tanto sono e se arriscar pelas noites por algo tão duvidoso.

Colocar as roupas sujas da noite anterior no cesto era uma das primeiras atividades a serem realizadas na nova manha que nascia. Dar uma morada digna aquele pequeno papel, que até agora não se incomodara em conferir o que era. Não tinha importância, com certeza não se passava de mais um daqueles que guardava nos bolsos e depois os encontrava todos embolados pela máquina de lavar. Mas a textura desse pequeno enrolado era, de fato, diferente dos demais. Decidiu conferir e outra vez confirmou que não se passava de um endereço que anotara e colocara ali. A cabeça já estava cansada, mas funcionando bem. Lembrou-se de que não havia anotado endereço de ninguém na última semana e perturbou-se quando não recordava de forma alguma daquele papelzinho. Já que não conseguia trazer nada à memória sobre o fato, decide guardar aquele pequeno em um lugar que pudesse olhar depois. Na estante, feita na parede mesmo, decide colocá-lo ali porque talvez fosse o lugar mais seguro. Estaria bem longe das vassouradas da mão que era amante da limpeza.

Ao chegar do passeio que havia feito logo pela manhã ensolarada decide conferir o conteúdo do bilhete e agora percebe que aquela não era sua letra. Mas poderia ser porque, afinal, cada dia escrevia com uma caligrafia diferente. O que a levava a pensar que realmente não tivesse uma personalidade definida. Só que se forçava a pensar o contrário. Quem consegue fazer vários tipos de letras é agraciado porque não se prende a uma coisa apenas como sendo definitiva. Sendo assim, o que estava anotado ali podia ter sido escrito por sua mão própria com unhas roídas em excesso. Agora não podia mais roê-las.

A noite já se aproximava e depois de um banho colocou uma roupa que disfarçasse bem sua real identidade. Isso era secreto demais. Não poderia se expor saindo aquelas horas a procura de algo que ninguém poderia ajudar a encontrar.

Outro dia sem resultado. Busca perdida. Agora já em seu quarto aquele pequeno pedaço de papel encontrado no bolso da blusa amarela lhe desperta interesse. Ao pegá-lo percebe que há um número de telefone escrito. Porém, não consegui se lembrar de quem fosse aquele número. E nome? Não escrevera. Alguém não escreveu. Pegou o papel e se dirigiu ao telefone para tentar descobrir quem era o dono daquele número desconhecido. Ao discar percebe que não constam todos os números. Faltavam os últimos dois. Recorda-se de uma frase da pessoa com a qual conversara tempos atrás quando falavam sobre idade. “Os números nos enganam.” Não estava enlouquecendo.
Aquele número realmente poderia ser de quem tanto procurava. Imaginava com fé.

O desespero invade-lhe a alma porque mesmo com aqueles números em mãos era impossível descobrir quais eram os últimos dois. Haveria uma solução para isso e teria que começar de zero a zero percorrendo até o noventa e nove para descobrir de quem era mesmo aquele tão misterioso número. Era preciso comprovar as expectativas. Estava muito duvidoso. Por mais de duas horas tentou até o número cinqüenta. Já se sentia muito cansada e, como não morava só, havia mais pessoas que precisavam usar o telefone.

A outra parte teria que ficar para o dia seguinte. Não tinha mais condições para tal tarefa. Precisava de ajuda. Talvez a internet pudesse auxiliar a encontrar alguém que com mais rapidez descobrisse quais eram os algarismos ausentes. Precisava de alguém que tivesse intimidade com números. Havia na sua frente uma lista de matemáticos e físicos que fora dada pelo computador. Anotou o endereço de um matemático. Seria melhor que o físico para realizar esse simples trabalho. Probabilidade.

Agora era ter coragem de procurar um profissional para que ele socorresse aquele ser que cada dia mais se desesperava em busca de algo tão distante. Iludira-se demais com apenas uma conversa, mas havia recebido tantas informações naquele dia e que considerava importante repetir a dose. A mesma dose que já não tomava por semanas. Decidida. Se arruma e vai a procura do endereço que anotara ali.

Preferia a noite para realizar seus feitos que seriam condenados por sua família e amigos. Ninguém sabia do que se tratava aquelas saídas tão tarde. Mas ele, o lógico, quem havia marcado. Agora o medo invadia o coração desesperado daquela que como cão de caça ia atrás da presa. E se fosse muito caro aquele trabalho? O dinheiro não era pouco, mas poderia não ser suficiente mesmo assim. Não podia passar por tamanha humilhação. Decide ir.

Ao chegar ao local indicado. Casa número vinte e nove. Avista a campainha e se aproxima. Ainda podia desistir daquilo e voltar para casa sem nenhum constrangimento. Mas já estava ali e não poderia ser tão medrosa, como sempre fora, não agora. Busca forças e aperta chamando assim a atenção do morador que a aguardava. A porta se abre e ouve o convite para que entrasse. Aceita e adentra aquela sala super ampla, mas não era ali que seria atendida. Continua caminhando e logo avista uma pequena sala no final do corredor.

Era uma sala não muito iluminada, mas bastante aconchegante. Na estante avistava sombras de livros e logo à sua frente uma poltrona e lá sentado estava a pessoa que poderia ajudá-la a solucionar o tão delicado problema. Após minutos de conversas e depois de ter-lhe contato tudo o que estava acontecendo à sala se silenciou e nada mais se ouviu. Ele não havia feito nenhum cálculo, porém avisa que já sabia muito bem quais eram os dígitos que estavam omitidos. Impossível. Mas ele afirmou com muita certeza. Era preocupante.

Chegou a pensar que não fosse matemático e sim uma dessas pessoas que se dizem sensitivas e que talvez ele tivesse buscado recursos em coisas do além. Depois de pensar isso se sentiu completamente idiota. Não era nada daquilo que pensara. Ela decide perguntar como ele havia, tão rápido, descoberto quais eram aqueles números.Não há possibilidades, afirma. A resposta foi simples e única. “A maior possibilidade você já efetuou ao me encontrar”. Ela, subitamente, coloca-se de pé e disposta a sair daquele lugar pergunta quanto deveria pagar pelo trabalho. Nada. Foi a resposta. Espantada. Estarrecida. Nunca se sentira daquela forma.

Não seria tão inocente de acreditar de primeira nas palavras de alguém que sequer havia mostrado o rosto. Disse que não acredita que ele fosse a pessoa que tanto procurava. Ele decide, de certa forma, provar que o era. Mas seria impossível porque ela não acreditaria em nada daquilo. De repente ele começa a repetir tudo que eles haviam conversado na noite do primeiro encontro. Agora era um momento muito delicado porque não sabia mais o que fazer e arrepende-se por ter encontrado quem tanto procura. Estava completamente sem ação, porém, ele de repente levanta-se e de frente com ela segura-lhe a mão. O coração gela e as pernas já não mais estavam em bom estado. O medo gritava dentro dela; ele, com toda educação, apenas disse para que não tivesse medo de nada.

Vagarosamente a puxa pelas mãos e agora os dois se encontravam frente a frente, olhos nos olhos. Fitando um ao outro. Sem ação. Mas não queria mais sair dali sem ao menos saber o nome de quem tanto lhe encantara. Mas ele, vagarosamente, aproxima-se e faz com que seus lábios delicadamente toque os dela. Não deu tempo de perguntar pelo nome, apenas se deixou levar por aquele momento pelo qual esperava, ou não. Ela se afasta. E com um adeus se despede. O nome levara consigo em seu ouvido. Ele havia cochichado. Era um nome simbólico. Montado. Bonito.

Com passos largos ela corre de volta para casa. Era muito longe aquele lugar onde buscara ajuda e encontrara muito mais. Pegou o primeiro taxi que avistou e rumou para casa. Já era tarde quando conseguiu estar em seu quarto outra vez. Agora estava totalmente desesperada. O problema do qual queria solução não existia, pelo contrario, acabara de nascer um bem maior que o anterior. Não queria pensar assim porque aquele beijo fora tão bom. A boca carnuda fizera-lhe sentir-se saciada. Tão doce. Tão molhado.

Havia sido beijada por outras bocas. Estava sendo. Mas aquela fora, por demais, diferente. Incomparável. Precisava de repouso para colocar seus pensamentos no lugar e perceber que aquilo realmente havia acontecido.

Nesse dia usava sapatos marrons. Tira-os e coloca-os junto do tênis branco que usava em suas caminhadas no entardecer de todos os dias. Não tinha disciplina para tal façanha, mas era necessário deixar aquela vida de sedentarismo. Não tinha mais ânimo para academia. Pretendia retornar ainda naquele semestre que terminava a graduação. Desfez-se de todas as roupas que trajava e decide tomar um banho para se sentir, quem sabe, menos tensa. Foi excelente ideia. Dali pra frente não mais tirava aquele nome da cabeça. E não poderia esquecer aquele rosto. Aquele toque. Gosto.

A partir daquele dia muito de sua vida seria alterado. Não era uma simples paixão porque não acontecera apenas entre os dois. Isso envolvia mais gente na história. Ela não tinha com quem dividir o que sentira naquela noite. Seria arriscar demais procurar alguém que pudesse dividir sentimentos tão profundos. E tinha plena certeza da incompreensão. Sentia-se só mesmo naquela casa repleta de pessoas que a amavam.
CONTINUA

10 comentários:

  1. Gente me perdoem por postar um texto tão gigante, mas espero que gostem desse, apenas, começo. Abraços.

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  2. Rogério, o seu texto está magnífico me encantei com a história e pretendo saber o fim. Parabéns, suas palavras foram muito bem colocadas e deram uma grande emoção no texto. Continue assim e nunca desista de seus sonhos. Lute por ele, e não deixe ninguém te impedir de sonhar, poucas coisas são tão inúteis e seria uma bobagem deixar de sonhar. Tudo de bom pra você, e muito sucesso na sua vida. Obrigada por todas as palavras de conforto que um dia você me disse, obrigada pelos seus ensinamentos que hoje me ajudam muito. E saiba que sempre que precisar de um ombro amigo, ou de conversar mesmo, estarei por aqui. Beijos e tenha um ótimo final de semana.

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  3. Pri!!! Muito obrigado por suas palavras que muito me alegraram... E certamente darei um fim a essa história..
    Abraços!!!

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  4. Rogério, se eu tivesse condições, eu faria um curta-metragem com essa história.

    Você escreveu de uma forma tão significativa, que eu pude imaginar as cenas com quase perfeição. Valeu a pena ler esse texto gigante e espero a continuação e o nome do bendito!

    Até mais!

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  5. Me sinto muito lisongeado com um comentário desse nível. Obrigado por ler meus textos e me incentivar.
    E certamente assim que eu tiver um tempinho vou postar o final da história. Agora em relação ao nome do bendito, sei não viu. Risos.

    Abraços

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  6. Ué, pode ser Benedito! Fica a dica.

    Abraços

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  7. Hummm...nada contra esse nome naum... mas vamos planejar...de qualquer forma obrigado pela dica Neto... kkkkkkkk

    abraços

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  8. Eu tava brincando sobre o nome, mas você quem sabe. É mais charmoso ocultar o nome, né?

    Abraços

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  9. Sabe que manter o nome em secreto vai causar mais curiosidade Neto. Acho que não revelarei não. Mas é como te falei... tá dificil!
    Abraços.

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  10. Realmente... Valeu a pena ler o texto, mesmo que um tanto quanto grande. Você escreve muito bem. Parabéns. :D Abraços

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Seu comentário é o que, muitas vezes, é que me mantem motivado a postar. Por isso um comentário critico será sempre bem vindo.